domingo, 21 de dezembro de 2008


ENSAIO: QUANDO COMEÇA A VIDA?

O momento do início da vida é uma questão por demais debatida em vários fóruns, principalmente nos meios científicos, filosóficos, jurídicos, políticos e religiosos. Essa questão levanta a poeira do debate atualmente no país, principalmente porque no plenário do Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional brasileira, discute-se sobre a constitucionalidade da norma estatuída na Lei nº 11.105/2005 – Lei de Biossegurança, que permite a utilização de células-tronco embrionárias congeladas por mais de três anos e mediante autorização dos doadores do material genético em terapia, obtidas de embriões humanos produzidos in vitro e que não se prestam à utilização nos respectivos experimentos.
A resposta à indagação do título interessa, fundamentalmente, em face da questão ética e jurídica que a envolve. Ou seja, falar-se em começo da vida para determinados grupos e por extensão a toda a sociedade, significa, por exemplo, definir a aceitação ética e legal para uma possível prática do aborto. Esse é o tema mais sensível, principalmente quando se levam em consideração aspectos religiosos.

A constitucionalidade da norma está sendo tratada no Supremo Tribunal Federal porque o então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, imbuído das suas convicções católicas, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN 3510/2005, questionando o artigo 5º e seus parágrafos que, ibsis litteris, preceitua:

Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Segundo as razões do então Procurador-Geral da República, esse artigo e seus parágrafos ferem frontalmente os princípios constitucionais do respeito à vida e à dignidade humana, pois, ainda segundo o Procurador, a vida tem início no momento da fecundação.

É aqui que começa a discussão: na conceituação. Afinal, o que vem a ser fecundação, para tê-lo como critério para definir o início da vida?

Antes de se perscrutar acerca das teorias que acercam o tema, vale preliminarmente conhecer alguns conceitos básicos:

ESPERMATOZÓIDE: Gameta masculino; célula haplóide (que possui metade dos cromossomos homólogos) reprodutiva produzida nos testículos.

ÓVULO: Gameta feminino, célula haplóide destinada a ser fecundada pelo espermatozóide.

FECUNDAÇÃO: União do gameta masculino, espermatozóide, com o gameta feminino, o óvulo.

ZIGOTO ou OVO HUMANO: Célula diplóide (possui um conjunto duplo de cromossomos homólogos), resultante da fecundação, que ainda não sofreu divisão celular (É o óvulo fertilizado). A divisão celular ocorre no instante seguinte à fecundação.

EMBRIÃO: É o organismo humano nas primeiras fases de desenvolvimento, depois que o óvulo fertilizado, ou zigoto, começa a se dividir. (É o organismo humano até oito semanas de vida intra-uterina).

FETO: É o produto da concepção a partir do terceiro mês de gravidez até o fim de sua vida intra-uterina.

Para se entender o conceito de FECUNDAÇÃO, fundamental para a compreensão do problema da definição do início da vida, e, com isso, poder opinar sobre as diversas teses apresentadas quanto ao momento inicial da vida, é de fundamental importância que se conheça, em paralelo, as principais teses acerca do início da vida. Quais sejam:

1- TEORIA GENÉTICA OU DA FECUNDAÇÃO: Essa é a teoria adotada pelos cristãos, por conseguinte pelo Procurador Cláudio Fonteles, e pela maioria dos pesquisadores, que assegura que a vida começa a partir da definição do código genético, ou seja, a partir da fecundação. A fecundação é o momento em que o gameta masculino, espermatozóide, penetra no gameta feminino, óvulo, impregnando e definindo o indivíduo com todos os seus caracteres genéticos através do ADN – Ácido Desoxirribonucléico. Com o código genético definido tudo o que acontecerá depois será simples conseqüência do natural desenvolvimento e fornecimento dos nutrientes pela mãe. É esse código que define a vida em potencial. Ou seja, o zigoto (ovo humano – resultado da fecundação) inexoravelmente desenvolverá todas as características da vida humana. Portanto, é com a fecundação que se começa a vida.

2- TEORIA DA NIDAÇÃO: Nidação é o momento em que o embrião se fixa na parede do útero – único ambiente em que poderá se desenvolver. Isso ocorre a partir do 4º dia da fecundação. Segundo essa teoria é a partir desse momento que os movimentos celulares começam e dão origem aos órgãos. Essa teoria justifica a pílula do dia seguinte e a posição dos pesquisadores de células-tronco em embriões congelados.

3- TEORIA EMBRIOLÓGICA: Para essa teoria a vida começa a partir da 3ª semana, ocasião em que o embrião adquire individualidade, pois, antes disso, ela pode se dividir e dar origem a outros indivíduos.

4- TEORIA NEUROLÓGICA: Essa teoria aplica o conceito de morte para definir o conceito de vida. Logo, se a morte é a cessação ou o fim das ondas cerebrais, então, por conseguinte, o início da vida é o surgimento das ondas cerebrais. Isso só vai acontecer na 8ª semana de gravidez.

5- TEORIA ECOLÓGICA: Para essa teoria a vida começa quando o feto pode viver fora do útero. Para isso é necessário que os pulmões estejam prontos, ou seja, a partir da 25ª semana de gravidez.

6- TEORIA FISIOLÓGICA: Para essa teoria a vida começa quando o indivíduo nasce e se torna independente da mãe, com seu sistema circulatório e respiratório definidos. Ou seja, para essa teoria a vida só existe a partir do nascimento, ou expulsão do feto da barriga da mãe.

7- TEORIA METABÓLICA: Para essa teoria não é pertinente falar-se em origem e fim da vida, pois a vida é um processo em constante continuidade, sendo os gametas apenas meios para desenvolvimento da cadeia vital. Ou seja, nasce-se e morre-se sempre. Isso ocorre quando, por exemplo, nos processos de regeneração das células – vida; ou quando uma célula deixa de produzir suas funções vitais, ou ainda, quando ocorre a completa exaustão das células vitais - morte.
NOTA: O debate que está acalorado em sede do plenário do Supremo Tribunal Federal, e que, por decorrência, é uma discussão de todos nós brasileiros, oscila navegando entre as diversas teses, ora atendendo as expectativas da teoria da genética (alegrando os cristãos), ora atendendo as expectativas dos teóricos embriologistas ou pesquisadores das células-troncos (alegrando os que podem se beneficiar do resultado dessas pesquisas). Do debate da nossa "Suprema Corte" haverá de sair uma decisão vinculativa com efeito prático para todos os brasileiros, pois fincará definitivamente - ou pelo menos enquanto esse for o rumor dos povos - uma jurisprudência (entendimento político-jurídico balizado) acerca da questão.
Este ensaio, como o próprio nome diz, tem caráter eminentemente básico e introdutório, sem maior detalhamento dos conceitos próprios da ciência biológica. Por conseguinte, este singelo trabalho de pesquisa não pretendeu açambarcar e esgotar todo o objeto do assunto em pauta, até porque isso seria, no mínimo, uma arrogância, em face da complexidade da matéria. Entretanto, por conter noções básicas e conceitos fundamentais, serve para, num primeiro momento, ter-se uma idéia sobre a questão e, quem sabe, instigar para maiores aprofundamentos. O que não pode acontecer, e esse foi o principal motivo para a elaboração dessa pesquisa, resultando neste ensaio, é que, num mundo tão globalizado como o que vivemos cujas informações estão democraticamente à disposição de todos, estando o tema em pauta para discussão, estampado em todas as páginas de jornal, impressos e eletrônicos, é dever de cidadania ter-se uma opinião a respeito. Mais vale essa observação se o tema estiver diretamente ligado à vida cotidiana das pessoas, como é o caso. Questões correlatas como "gravidez indesejada ou precoce"; ou, ainda, questões relacionadas ao “aborto” ou às “pesquisas com células-tronco” estão na ordem do dia do nosso país e estão diretamente relacionados com o objeto deste ensaio.



UM CONTO SOBRE A ESPERANÇA


Rafael, empresário do ramo de celulose, trabalhava quatorze horas por dia. Não tinha tempo pra família. Com o tempo escasso, dispensava apenas alguns instantes ao lado dela, quando se reuniam pra assistir televisão. A relação com a esposa Angel não passava de algumas carícias noturnas antes do descarrego sexual. Para Rafael, isso era apenas um momento de liberação do estresse. Compensava-a com jóias, roupas e sapatos de grifes famosas. Ela acostumara-se com aquilo. A conversa entre eles restringia-se a questões práticas do dia-a-dia. Rafael não tinha tempo pros filhos, entretanto não lhes faltavam escolas boas, lazer e viagens.

Naquele natal, Angel e as crianças receberam a esperada e prometida visita de Felipe, sogro e avô. Depois da breve recepção, todos fora à sala e conversaram algumas palavras amenas. Num instante, como de costume, prostraram-se em frente ao televisor. E não trocaram mais palavras.

As chamas da lareira estavam acesas. Lá fora chovia muito. O frio era intenso, como que a rachar os ossos. Os pássaros grunhiam escondidos em seus ninhos, alojados ente o telhado e o forro de madeira.

O pequeno Vítor, filho caçula da bela Angel com o sisudo Rafael, brincava no tapete da sala com seus soldadinhos de chumbo. Os outros filhos, Adélia e Antônio, adolescentes, navegavam na grande rede numa sala ao lado.

A tempestade insistia e pedia a atenção da família que, calados, cada um em sua poltrona, assistiam à novela, exceto Rafael que, com óculos bem postos caído ao nariz e com ar de concentração, lia o último manual elaborado pela equipe técnica de sua empresa. Felipe, não acostumado àquele silêncio e isolamento, já se mostrava incomodado.

De repente se ouve um grito vindo da cozinha, acompanhado de uma correria de Angel para a sala. Ela fora preparar um café, enquanto durava o intervalo da novela. Era a natureza que retrucava e insistia pela atenção da família. O susto se dera por causa de um fulminante relâmpago fazendo-se acompanhar, segundos depois, de um ingente trovão. Houve um blackout no bairro. Então Angel, que estava grávida de pouco, mas que o marido não sabia, tirou da tomada o cabo do televisor, pois quando a energia voltasse poderia queimar o aparelho. Depois acendeu um candelabro e pendurou no centro da sala.

O pequeno Vítor, que ainda estava abalado com o tremor causado pelo trovão, levantou-se do chão onde brincava e sentou-se no canapé de vime, recostando a cabeça no ombro de seu avô Felipe, pedindo-lhe que contasse uma história. Então o sábio ancião, atendendo ao pedido do neto, pediu a todos que contaria uma história desde que a família atendesse algumas condições.

- Pode pedir vovô, que nós atendemos. Quais são as condições? Interpelou Adélia.

De pronto o velho Felipe estipulou: Que Angel preparasse um novo e gostoso café, acompanhado de pão de queijo, esquentado ali mesmo na lareira, e que, se a luz retornasse, eles não ligariam o televisor novamente até que terminasse a história. Felipe advertiu a Rafael que interrompesse a sua leitura até o final da história. Todos concordaram. O café e o pão de queijo foi posto na mesa de centro da sala, em frente à lareira.

Então o sábio Felipe contou essa história que clamava sobre a importância da esperança na vida das pessoas e da sociedade. E solenemente começou:

- Haverá um tempo no futuro, daqui a muitos milhares de anos, que a esperança desaparecerá!

- Mas como vovô, a esperança não é a última que morre? Interpelou Vítor.

- Sim, querido netinho. Mas pra que haja esperança é necessário que haja bondade no coração das pessoas, bem como disposição para o diálogo! Redargüiu o avô. E continuou:

- Quando a esperança esvair-se, com ela toda a sociedade perecerá!

Aquele velho sábio, com olhar cavo e mavioso, arfando como é próprio da idade, espádua recaída e no rosto rugas enrijecidas, entendeu que aquela era a hora de transmitir para todos o que a universidade da vida e a lida pelos campos de sua Minas Gerais lhe passara a duras penas. E continuou a sua história.

“Pois assim foi que todos os seres humanos se tornaram inférteis e o mais jovem dos homens era um velho centenário que dormia deitado sobre as palmeiras secas estendidas na areia de um coqueiro torto e cambaleante...

Depois que o meio ambiente deixou de ser preocupação, pois já não havia fauna e flora, pois a última floresta alimentou o ímpeto mercantilista do último e inescrupuloso madeireiro...

Depois que todas as formas de prazer haviam sido exauridas, e a alimentação se restringia à mera ingestão de cápsulas de substâncias concentradas; os atos libidinosos já não mais apeteciam ninguém, pois esgotada e extinta estava qualquer manifestação de sensualidade, deixando assim de existir a sexualidade...

Depois do fim de todos os impérios, sistemas políticos e governamentais...

Depois que chegou o tempo em que qualquer tentativa de organização e manifestação de poder mostrava-se de todo infrutífera...

Depois que o dinheiro perdeu o seu valor e desaparecera por completo a ânsia de acumulação de riquezas, porque mostrar-se detentor de bens já não mais fazia sentido...

Depois que o último sacerdote, pastor ou pajé percebeu que não conseguira mais intermediar as relações com Deus e já não convencia ninguém, consagrando-se assim o fim de todas as religiões...

Depois que as reuniões tornaram-se insossas e o sentimento egoísta reinou soberano sobre o comportamento humano, aniquilando definitivamente a família e sociedade;

Depois que as cercas perderam o sentido de existir e a propriedade privada representava nada menos que o último ato de uma peça trágico-cômica, motivo de alguns furtivos risos...

Depois que todos os homens deixaram de conversar entre si, pois as palavras não mais conseguiam comunicar nada, porquanto somente o olhar e aquela postura fúnebre e triste era o suficiente para denotar o sem-sentido da vida...

Depois que a indiferença, a tudo e a todos, mostrou-se como a única forma de sobrevivência, não obstante apenas a doença e a morte apresentar-se como os únicos remédios para aquele tremendo estado de amargura e solidão...

EIS QUE DO NADA, DO ABISMO DA DESESPERANÇA EM QUE HABITAVA O HOMEM, SURGE UMA SURPRESA... AH, UMA LUZ!!! UMA BELA SURPRESA:

Eis que Deus dá provas de que não desistiu da humanidade, cujo ato representou para aquela gente um novo surto de esperança:

- UMA MARIAZINHA QUALQUER, DA PERIFERIA DO MUNDO, DAS ESQUINAS DA SOLIDÃO E DO DESPREZO, APRESENTA-SE GRÁVIDA. A FERTILIDADE - COROLÁRIO DA CRIAÇÃO DE DEUS - MOSTROU-SE, MAIS UMA VEZ, POSSÍVEL. UMA CRIANÇA IRIA NASCER!

Então as pessoas voltaram a conversar entre si, pois entenderam que a cada criança que nasce Deus mostra a todos que ainda acredita na humanidade, pois esse bebê representa a esperança de um mundo melhor, onde:

As sementes de solidariedade sejam regadas;
As crianças não sejam assassinadas;
Os idosos sejam respeitados pela experiência e pela façanha de terem sobrevividos às intempéries da vida;
Os diferentes sejam considerados apenas como a luz cintilante de uma pérola azul ante as centenas de pérolas brancas, por isso, belas e valorizadas;
Entre os países não haja muros ou cercas, mas pontes que unam os povos, pois o cidadão não o será apenas da polis, mas de um mundo sem fronteiras;
O lastro das moedas será o quantum de qualidade de vida e preservação da natureza, com absoluto respeito à dignidade da pessoa humana e à vida;
O princípio norteador de qualquer manifestação religiosa será a plena identificação semântica e ontológica de Deus com Amor, e qualquer vinculação de Deus com ideologias justificadoras de poder e dominação será in limine considerada loucura;
Enfim, que todos os homens e mulheres respeitem-se mutuamente, amando-se uns aos outros como a si mesmo, conforme um antiqüíssimo ensinamento de um mestre, preconizado num tempo muito remoto, cujas palavras estavam escritas num pergaminho perdido no tempo e escondido nas poeiras de uma biblioteca soterrada, descoberta por um arqueólogo há mais de mil anos. Esse livro, que os povos antigos chamavam de Segundo Testamento, atualizava outro, o Primeiro Testamento, que falava de um Deus que criou o mundo e tudo o que nele existe com a força de sua palavra, e sua felicidade era completa, não precisava de mais nada!”

A essa altura, Vítor que já estava dormindo, foi carregado para a cama por Rafael, que pediu ao velho que interrompesse um pouco a história, pois queria saber do final.

Nesse momento a energia elétrica voltou. As lâmpadas se acenderam. Mas a família continuou ali e nem se lembrou da novela, esperando o desfecho da história. O café se tinha acabado e não havia mais pães de queijo. Retornando à sala Rafael perguntou:

- E aí pai, qual é o final da história?

- Não existe final nessa história. Dela, como de qualquer história, apenas se podem tirar algumas conclusões práticas para a vida. O sentido dela é que não precisamos esperar os fins dos tempos, pois por certo não o presenciaremos, para alcançar a sua mensagem.

- Pai, eu gostei da história e de todo o significado que ela traz. Mas o que posso fazer pra melhorar o mundo? Trabalho horas a fio, sou honesto no que faço, bem sucedido e reconhecido profissionalmente, dou um duro danado pra sustentar a família. A parte que faço não é suficiente? Indaga Rafael.

- Não! Definitivamente, não! Tu não precisas contabilizar as tuas bondades. Há que ver o que está faltando. Não te é evidente que, embora cuides materialmente de tua família, o desprezo que tens por ela manifesta-se quando chegas do trabalho? Insiste Felipe.

Mas... Como assim?

- De nada adianta, meu filho, dar o conforto do palácio à esposa e filhos, encher tua família de bens materiais, se lhes faltam o diálogo, carinho, presença e interação. A tua família precisa de ti, precisa de tua palavra. Lembra que a PALAVRA tem força, pois por ela Deus criou tudo o que existe? É preciso mais diálogo em sua família. Acaso tu sabes que Angel está grávida?

- Grávida?! Ela não me disse!

- É preciso que se diga algo que está tão evidente!

Nesse momento, trocaram-se os olhares. Os filhos aconchegaram-se dos pais e abraçaram-se todos. Angel providenciou outro café. Desta vez comeram com bolinhos fritos, carinhosamente preparados pelo próprio Felipe, não sem antes alfinetar:


Oh, grávidas - e todos os que estão em volta dela, cuidem bem de seu bebê, ele pode ser a nossa última ESPERANÇA de um mundo melhor.
Crédito da pintura: Claude Monet

sábado, 20 de dezembro de 2008




MADRUGADA FELIZ DA MAL AMADA - Miniconto


Madrugada. No susto, acordo com um grito. Não era de dor ou pavor – era um grito de amor!

Alguém no prédio fazia uma mulher feliz, a gemer de orgasmo.

Valeu à pena os condôminos perderem o sono. Era a síndica, solteirona e carente...

... pela manhã vai acontecer a assembléia do condomínio!




TREZE ANOS MAIS NOVO


Brasília, 29/09/2008 – Cem anos da morte do maior escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis.


NOTA: Um conto baseado em “MISSA DO GALO”, obra do mestre Machado de Assis, publicado em 1893.

Nunca pude entender a conversação e o momento que tive com uma senhora, de nome Conceição, contava eu dezoito, ela trinta e um. Foi numa noite de Natal. Eu tinha combinado com um amigo que iríamos à missa do galo na Catedral de Brasília, na esplanada dos ministérios. Lugar que eu conhecia apenas de fotografias. Como que a esperar, combinei com ele que quando fosse à hora ligaria para o seu celular.
E estava hospedado no apartamento de um Deputado Federal, que era amigo do meu primo, que tinha sido o seu cabo eleitoral. A sua esposa, a dona Conceição, a que me referira, e sua mãe, dona Inácia, acolheram-me bem, desde quando cheguei do Tocantins, há duas semanas, para prestar um concurso público. A minha estada era tranqüila, naquela quadra da asa norte, pois somente estudava e, de quando em vez, fazia algumas caminhadas no Parque da Cidade. A família era pequena, o deputado, a esposa, a sogra e duas empregadas. Eles costumavam dormir cedo, por volta das dez horas da noite todos estavam nos quartos; às dez e meia o apartamento silenciava nos sonos de seus moradores. A cidade estava vazia, pois era feriado, e em Brasília, nesses períodos, todos se ausentam.
Nunca tinha ido ao cinema, pois na cidade que eu vinha não havia salas. Um pouco mais cedo, por volta das 19h00 horas, então ouvi o deputado dizer que iria ao Cine Brasília, e eu, atrevido, fui pedir-lhe que me levasse consigo. Ouvindo o meu pedido, a sogra fez uma careta, e as empregadas riam à socapa; ele não respondeu, vestiu-se, saiu e só retornaria na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o “Cine Brasília” era um eufemismo em ação, pois na verdade, com aquela expressão que todos entendiam, menos eu, ele queria dizer outra coisa. O deputado tinha uma amante, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição, embora sofresse com a situação, terminava por aceitá-la.
Ó Conceição! Chamavam-lhe “a Amélia”, e fazia jus ao título, pois a dedicar-se nos afazeres domésticos, tão facilmente suportava o desleixo do marido para com ela. Na verdade, ela tinha um temperamento moderado, uma vida sem muita emoção, nem oito nem oitenta. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Nela se aplica, por certo, o que se diz de alguém que não tem um brilho estonteante: era no máximo uma pessoa simpática!
Naquela noite de Natal, então, foi o deputado ao “Cine Brasília”. Era dezembro de 2007. Eu já devia ter voltado a Tocantins, pois o concurso foi no primeiro domingo do mês; mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na catedral de Brasília”, pois soube que lá estaria presente toda a corte palaciana do Planalto, inclusive o presidente da república. Eu queria conhecê-lo de perto. Por volta das 22h0 horas a família recolheu-se, e eu fiquei sozinho esperando a hora chegar para ligar pro celular do meu amigo; então me arrumei e fiquei esperando na sacada do apartamento. Dali, quando chegasse a hora, passaria sorrateiramente pela sala e sairia sem acordar ninguém.
— Mas, Nogueira, meu rapaz, que fará você todo esse tempo? — perguntou-me a mãe de Conceição.
— Ficarei lendo, D. Inácia, não se preocupe.
Tinha comigo um esboço do livro, recolhido da internet, “Capitu Mandou Flores - Contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte”, uma coletânea organizada e prefaciada pelo Escritor e Professor de Literatura Rinaldo de Fernandes. Sentei-me à rede, daquelas que são feitas no Ceará, que estava armada na sacada, à luz de uma fraca luminária fixada na parede. Enquanto a casa dormia, passei a ler os contos “Juca”, de amador Ribeiro Neto e o texto de Lygia Fagundes Teles. Que delícias de aventuras! O tempo voava, e me deleitava quando cheguei ao texto de Moacyr Scliar, mostrando “Um outro enfoque”. Ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. De repente, ouço um pequeno barulho. Assustei e parei a leitura. Eram uns passos que vinham do corredor do apartamento, certamente de um dos quartos. Com certo medo, pois o apartamento era grande, e estava meio escuro, pensei que a minha leitura pudesse ter acordado alguém, e isso era constrangedor, para um hóspede. Levantei a cabeça e vi assomar ao vidro da sacada o vulto de Conceição.
— Ainda não foi, menino? Perguntou ela.
— Não fui! Ainda são onze horas.
— Que paciência!
A mulher chegou à varanda, arrastando pantufas de coelhinhos. Vestia um pijama de algodão, duas peças, cor de rosa. A malha fina deixava aparecer os contornos daquele corpo escultural, que não se via nas roupas que comumente usava. Fechei o livro; ela foi sentar-se numa cadeira de vime que ficava bem em frente de onde eu estava, mais próxima do peitoril da sacada. Então eu lhe perguntei se o barulho do passar das páginas a havia acordado, sem querer, ao que ela respondeu com presteza:
— Não! Absolutamente! Acordei por acordar, na verdade acho que nem dormi.
Olhei nos seus olhos e realmente eles pareciam não ter ainda pegado no sono.
— Logo deverei ir, devo telefonar pro meu amigo.
— Que paciência a sua de esperar acordado, poderia ter cochilado um pouco enquanto esperasse seu amigo. Não tem medo de fantasmas? Eu cuidei para que pensasse que eu fosse uma quando vim.
— Na verdade eu me assustei; mas você apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é sobre Machado de Assis.
— Justamente: é uma coletânea de contos e alguns ensaios.
— Gosta de ler contos e crônicas?
— Gosto.
— Já leu Rubem Braga, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo?
—Na biblioteca pública de Tocantins há alguns livros deles. Apostei.
— Eu gosto muito de literatura, mas leio pouco, por falta de tempo. Que livros é que você tem lido?
Citei-lhe alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar daquela cadeira de balanço, com um olhar às vezes sonolento, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, ela ficou emudecida por alguns minutos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar as pernas vestidas por aquele pijama curto, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
Primeiro pensei: talvez esteja aborrecida.
Não me agüentando, então falei:
—Conceição, creio que já está na hora, e eu...
— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Tenho costume, pois é a melhor hora pra estudar.
— Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou morta e não consigo fazer nada. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o quê, Conceição?
Ela então sorriu com o que eu disse, e aquele semblante triste deu lugar a uma alegria contagiante. Ela tinha os movimentos lentos, então que agora, num gesto rápido, trouxe a cadeira mais pra perto de mim. Ela nunca me pareceu tão bela como naquela noite. Puxando assunto, voltou a espantar-se de me ver esperar acordado; eu tornava a dizer-lhe o que ela já sabia, pois queria aproveitar minha passagem por Brasília e contar em Tocantins que participei da Missa do Galo com o presidente da república.
— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. Disse ela.
— No conteúdo sim; mas não é sempre que se pode participar de uma missa na catedral de Brasília. Aqueles anjos pendurados na abóbada; poder sentir-se dentro de uma taça de vinho, deve ser fantástico. No norte, porém, nada se pode comparar às festas de juninas...
Então ela curvou-se, agachando-se para coçar os pés. Pude nesse momento mágico ver uma das coisas mais lindas: os seios firmes e bicudos, pois estavam tesos, que quando ela voltou a sentar-se normalmente na cadeira, percebi os mamilos revelarem-se debaixo daquela malha fina cor de rosa. As veias em seus seios eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Para não demonstrar-me estupefato, continuei a falar abobrinhas e o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me vinham à cabeça. Falava sem parar de coisas engraçadas, e rindo queria fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela, negros, ficaram lindos naquelas pálpebras amendoadas; os contornos afilados do nariz, um tantinho curvo, bem como os lábios lembravam os dos anjos da catedral, que tinha visto somente por cartão postal. Quando eu falava um pouco mais alto, ela reprimia-me:
— Fale mais baixo! Mamãe pode acordar! Dizia baixinho.
Para não acordar ninguém, ela então se aproximou mais de mim, e não saía daquela posição, que me enchia de gosto, pois tão perto ficavam os nossos rostos. E eu, nervoso com aquela situação, falava mais que ela, pois que cansada ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Levantou-se e veio sentar-se ao meu lado, na rede. Fiquei louco com o calor do corpo dela a se encostar junto ao meu, dentro daquela rede. Conceição disse baixinho:
— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
— Eu também sou assim.
— O quê? Perguntou ela encostando os ouvidos para ouvir melhor.
Ela riu-se da coincidência; pois também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Eu sou assim, quando acordo no meio da noite custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, ligo a TV ou leio um livro, torno a deitar-me, e nada.
— Foi o que lhe aconteceu hoje.
— Não, não, atalhou ela.
A conversa continuou e os minutos passavam. De quando em vez, alertava-me:
— Fale mais baixo, mais baixo...
Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda me recorda é que antes dela sentar na varanda, ela que antes era apenas simpática, ficou linda. Ela estava de pé, quando eu quis levantar-me ela não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a ficar sentado. Quando eu fui dizer alguma coisa, ela saiu, como se tivesse um arrepio de frio e deu às costas, sentando-se na cadeira, onde me achara lendo. Naquele terraço havia dois quadros que pendiam da parede. E disse:
— Não gosto destes quadros! Já pedi a Chiquinho para comprar outros, há uns lindos na feita da torre.
Chiquinho era como ela chamava o deputado. Um deles era de “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Eram vulgares; naquela situação em que me encontrava, pra mim eram lindos. Então disse:
— São bonitos.
— Bonitos são; mas estão velhos. E depois francamente, eu preferia duas imagens de santas. Essas aí são mais apropriadas para borracharia.
— Borracharia? A senhora já foi a uma borracharia?
— Não, mas imagino que os fregueses, enquanto esperam o concerto de pneus, só falam de mulheres. O dono da borracharia, que não é bobo, para que não o apressem, alegra a vista deles com figuras de mulheres peladas. Em casa de família é que não acho certo. Na verdade, eu não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não pode ser posta na parede, nem eu quero. Está no meu quarto.
Quando ela falou em Nossa Senhora da Conceição, lembrei-me da Catedral de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira de Brasília, onde deveria participar da Missa do Galo. Mas preferi ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, sobre suas paixões de quando tinha a minha idade. Quando cansou do passado, falou tristemente do presente, da sua convivência com o deputado, a lida com a política, etc. Ela contou que se casara aos dezenove anos e que se arrependera. Então, num deslize, disse:
— Precisamos mudar a pintura desse apartamento!
Como falava comigo,
concordei para dizer alguma coisa. Enquanto ela falava, eu não conseguia tirar os olhos dela. Na rua, não se ouvia nada e nenhum movimento na quadra.
Depois dessa conversa amena, eu tomei coragem e perguntei a ela porque não se separava do deputado, já que era tão infeliz. Ela sorriu. Depois chorou. E entre lágrimas, encostou seu peito junto ao meu, e naquele abraço quente, ficou calada sem dizer uma palavra, apenas soluçando.
Eu não resisti: carinhosa e cuidadosamente, puxei seu queixo suave, cuja pele era mais macia que a pétala de uma rosa. Fitando em seu olhar choroso, encostei meus lábios aos dela, que se misturando às suas lágrimas, sua língua embebia num gosto temperadamente quente de desejo e paixão. Não era pra menos que eu queria algo mais ali mesmo, e apalpando-a por todo o seu corpo, pude me deliciar de um prazer adolescente e rápido, sem deixar de cuidar que ela também ficasse inteiramente satisfeita. E no final, com uma fala meiga, cujas palavras saiam de todo o seu corpo, dizia que nunca havia chegado ao orgasmo em sua vida.
Depois disso, chegamos a ficar por algum tempo — não posso dizer quanto — inteiramente calados, deitados nus naquela rede na sacada do último andar do prédio que só tinha seis. O amor silencioso praticado, não nos fez preocupar nenhum minuto com alguém que pudesse ser acordado. Conceição parecia estar sonhando.
Subitamente, meu celular alerta o vibracall, que atendi a contragosto. Era o meu amigo, perguntando se não íamos à Missa do Galo na Catedral. Então, ela ligeiramente levantou-se e arrumando-se disse:
— Vá, pois já está na hora.
— Que horas são? Perguntei a ela, mas foi meu amigo que respondeu:
— Já são meia noite e meia. A missa já começou.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Até amanhã. Insiste ela novamente.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou-se pelo corredor adentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o amigo que esperava. Guiamos dali para a Catedral. Durante a missa, eu não conseguia ver outra coisa em minha frente senão a figura de Conceição, e não era a santa Nossa Senhora. Ela, Conceição, infeliz mulher do deputado, interpôs sua imagem várias vezes, entre mim e o bispo; o Presidente da República então, esse é que nem prestei atenção se estava presente. Tentei algumas vezes voltar a prestar atenção na missa e me esquecer dela. Olhava pro lado, e não conseguia. Olhei então pra cima. Vi os anjos, como que voando, estavam pendurados no teto da Catedral, cujas feições de suas bocas me fizeram mais uma vez lembrar de Conceição.
No dia seguinte, durante o almoço, na mesa estavam presentes Conceição, o deputado, a dona Inácia, mãe dela, e as empregadas que serviam. Todos calados. Tentei puxar assunto e falei da missa do galo e das pessoas que lá estavam (inventei alguns nomes) sem, contudo, excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, apática, sem nada que fizesse lembrar da noite anterior.
No ano novo voltei para Tocantins. Quando retornei a Brasília, em março, para prestar outro concurso público, o deputado tinha morrido de apoplexia durante a sessão inaugural no plenário da Câmara dos Deputados, pois corria uma denúncia do Ministério Público de seu envolvimento numa quadrilha de corruptos, talvez por esses escusos afazeres, não se lembrava que em casa tinha o maior dos tesouros, sua esposa. Descobri que Conceição morava em Taguatinga, mas nem a visitei, nem a encontrei. Ouvi mais tarde que se casara com o ex-chefe de gabinete do marido, treze anos mais novo que ela.

SONHOS E SANGUE - Miniconto



BAM! O tiro do revólver zunia ao pé do ouvido enquanto ele corria carregando o malote, e pensava: “-Com esse dinheiro vou fugir com Zuíla e Zezinho, pro Ceará”.

BAM! No segundo tiro ele se esquivava correndo em zigue-zague, e sonhava: “A casa na praia, o sítio pra mamãe, a caminhoneta, a cirurgia do papai, um futuro pro Zezinho...”

BAM! “- A perna dói e não consigo correr, quanto sangue!,Aai!”. Rastros vermelhos na ruela da favela. Whack!Pow! A porta do barraco se abre, adentra e atravessa velozmente o casebre de paredes de papelão. Pula o muro, fere-se com os cacos de vidro em cima dele, chuta o vira-lata do vizinho. Quando adentra em seu barraco ainda consegue ver os olhos verdes de sua Zuíla. Sua última imagem.

BAM! Poff! José cai como um saco sobre o berço vazio e pobre do pequeno Zezinho que mamava no peito de Zuíla. O quarto tiro que saiu do revólver do vigilante da loteria foi certeiro e atravessou a cabeça do bandido que vinha realizando diversos assaltos na região.

ESTAÇÃO DE TREM

Penumbra no sótão
Estilhaços da alma
Arrulhos que acalmam
Vagões que se lotam

São trilhos da morte
Segundos que voam
Pastores que pregam
Destinos de sorte

São vidas compridas
E curtas desvalidas
São gritos frementes
Pedintes, dementes

Nas ruelas polícias
Nos becos milícias
Nas bocas delícias
De fumo primícias
Prostitutas doentes

Nas vidas enganos
O amor que morreu
Tem rato nos canos
Que dos ralos fedeu

Crianças com cola
Respiram a escola
E sonham com a bola
Nos braços de Orfeu

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

Os passageiros passam...
Se apressam...
Viajam...
E vêem tudo isso...

E... até que chega a morte e ninguém fez nada!

O DESENCANTO DO PALHAÇO

Minhas lágrimas descem
E desmancham a maquiagem
Do meu rosto!
Mas o que vale essa pintura perdida,
Que tão furtivamente,
Tentava esconder a
Tristeza deste momento?

Eu não suporto a dor
De ouvir tuas palavras
Nuas, cruas, vãs...
A me dizer, tão pérfida,
Sobre esse desesperado amor
Pelo mágico.

O mundo gira,
Tal como o globo da morte
E o tempo é implacável
E cheio de ilusões e ilusionistas!

Espero que tenhas tido sorte
Ao fazer essa escolha!
Vais e não voltas mais
Nunca mais, nunca mais...

O que é o amor
Para que o desencanto
Surja inesperadamente?

O que é o amor
Para que nessa desilusão
Eu só consiga enxergar
Quem tanto me maltrata?

O que é o amor
Para fazer com que eu,
Mesmo todo em mim,
Como todas essas pessoas
Em volta e sorrindo,
Esqueça-me no vazio
Dessa solidão?

E agora?
O que fazer?

Essa maquiagem de palhaço
Tem que ser refeita,
Pois o público me espera
E o picadeiro é o meu palco de alegria!

SONETO DE NATAL


As luzes brilham na cidade
No coração irrequieto
N’alma tristeza em desafeto
Acalma a estrela que a invade

Na manjedoura: a esperança!
Toda a surpresa de um presente
Cândido ser d’uma criança
Mostrar u’a vida diferente

Viver a fé que se agiganta
Junto à trombeta que anuncia
O querubim que assoma e canta

No nascimento de um menino
Em cujo olhar toda poesia
Salva este mundo, oh! Pequenino!
A NOITE DE BACO

Até que ele vinha tentando melhorar. Na conversa com os amigos de boteco ele comentava que queria mudar de vida. Na verdade já estava cansado dessa vida de só ter tempo pra bebericar umas e outras, disputar sua sinuca e atentar ao futebol. Aliás, já fazia tempo que seu time, o Madureira, não ganhava e o sonho de subir pra segunda divisão estava mais perto do país das quimeras do que nessa real existência. Na sinuca, entretanto, não tinha campeonato que não ganhasse. E o prêmio, tirando um trofeuzinho de taco e uma sinuquinha desenhada na medalha, não variava: caixa de cerveja. E bebia todas, com uns poucos amigos, ali mesmo no bar. Quando voltava pra casa, lá pelas duas da manhã, já de domingo, a mulher avisava, incontinenti, que não dormisse na cama, pois aquele bafo e ronco, ninguém merecia.

A reclamação de todos sobre o estilo de vida de Zeca era geral. De Pedrinho, seu filho, vinha a cobrança de quando que ele o levaria ao parque, pois já fazia três temporadas na praça, e à criança só ficava a promessa do pai de um dia levá-lo. Da mãe, a velha admoestação “meu filho, não beba, isso pode te deixar doente, que nem seu pai, que morreu de cirrose!”. Da sogra, só ouvia os resmungos, pelo canto, às escondidas, “não sei por que tu não largas esse bebum”. E a sogra, ainda alfinetava a paciência da filha dizendo: “Pedrinho se acostuma, minha filha, melhor seria que a criança crescesse num ambiente sadio”. Amélia nem dava ouvidos, e continuava seus afazeres.

Amélia, mulher que sem pensar em ser igual a da música, não só não aceitava dormir com ele, depois de uma noitada de cachaça, mas ficava a questionar consigo mesmo sobre os ditames do destino: “Meu Deus, como pude gostar de Zeca?”.

Na verdade, Zeca já vivia aquele estilo de vida quando ela o conheceu há vinte anos atrás. Ela se enfeitiçou por aquele que era considerado o “cara”. Jogava bola na praia de São Conrado, batia umas partidas de sinuca nos botecos, ganhava algumas cervejas, que ali mesmo as consumia, depois caía naquele mar revolto de surfistas. Embora pobre, sem nem um tostão no bolso, vivia e esbanjava aparência. Zeca tinha um corpo escultural. Cabeludo, estilo black power, barriga de tanquinho e 1,90m de uma negritude de dar inveja. Ele sabia que era um negão bonito. Amélia, que não ficava pra trás, era o que havia de melhor da mulherada que desfilava na rocinha. Era uma senhora mulata. Diziam até que, se Sargentelli fosse vivo, ela tocaria um instrumento de solo naquela orquestra de mulatas gostosas. Ela colocava a tanga fio-dental, com aquele par de pernas e bustos exuberantes a desfilar na praia, num requebrado caliente que chamava a atenção geral, inclusive de Zeca, que não era bobo e que ficava ligado, de olho bem aberto e, então, como a cantar de galo gritava de onde estivesse: “Essa aí ninguém tasca que é minha. Quem tiver juízo que fique longe, pois essa nega eu vi primeiro!”.

Foi com o desemprego de Zeca que a bebedeira pegou. Não conseguia trabalhar, porque profissão mesmo ele não tinha. Só sabia ser funcionário público, e ainda de emprego arranjado pelo vereador eleito, representante das favelas. Quando o governo tirou todo mundo, porque o tribunal de contas pegou no pé da exigência do concurso público, o Zeca foi o primeiro a dançar. E olha que ele era um pé-de-samba. Contam até que ele fora um dia convidado pros ensaios da escola de samba da Mangueira. Quem sabe seria um mestre salas?! Duvidou, nunca tentou. Dizem que teve medo de subir aquele morro, pois lá morava um desafeto das sinucadas da vida, onde ganhara uma aposta e este nunca quis pagar. O problema é que Zeca um dia foi cobrar e quase perdeu a vida. O cara era protegido do traficante da região.

Desde que Zeca perdeu o emprego de fiscal de garis, só vivia de biscates. Vendia um carro aqui, ganhava uma omissão ali, virava corretor da noite pro dia. Viajava, de vez em quando, no caminhão do seu João do armazém, pra ajudar na estiva.

Enfim, a vida do Zeca não era mole não. A renda era escassa, e não fosse sua habilidade na sinuca, faltava até o da cervejinha. E assim Zeca foi levando a vida, meio que acreditando que um dia aconteceria a grande sorte. Quando conseguia uns trocados jogava na megasena, e não deixava de dar uma arriscada no jogo-do-bicho.

E esse dia chegou.

Depois de muito ser humilhado por todos, quando viu que ganhou o prêmio do jogo-do-bicho, que não era muito, mas dava pra acertar as contas e ainda tentar um negócio, saiu gritando na rua e mandando todos os desafetos àquele lugar. Não teve piedade e pagou até um menino pra defecar no carro do seu Aristides, que há muito o ameaçava de despejo por falta do aluguel do barraco em que morava. Depois da cagada, o Zeca foi lá e pagou, tim-tim por tim-tim, tudo o que devia ao seu Aristides, e saiu, altaneiro, sem que antes alfinetasse em bom carioquês:

- E aí seu Aristides, maneiro? eu soube que jogaram merda no seu carro! Cuidado com esse povo! Aqui se faz, aqui se paga! Aliás, estou lhe avisando que estou me mudando, viu?

Zeca era um daqueles bonvivans, que apesar das lamúrias, nunca desistira de ser feliz. Ao ouvir os reclamos da Amélia, que segurava as pontas com a renda de pedicure, ele nunca a contestava, e sempre concordava com tudo que ela dizia. Talvez fosse por isso que ela nunca aceitara os conselhos da mãe. E, apesar de todas as mazelas, compreendia que o Zeca era um homem bom. Só lhe faltava dinheiro pra serem felizes e sustentar o Pedrinho com dignidade. Mas sempre dizia, com altivez, que se algum dia ganhasse muito dinheiro jamais sairia do morro da Rocinha. Aquilo é que era lugar pra viver. De lá se avistava a melhor paisagem do Rio de Janeiro. De um lado, a exuberante paisagem da baía de Copacabana; de outro, a praia e o elegante bairro de São Conrado. Dali se avistava o melhor da beleza natural que Deus proporcionou ao Rio de Janeiro.

Com a grana do jogo-do-bicho, Zeca comprou um barraco que tinha terraço. Não era distante de onde morava. Há muito sonhava com aquela casa. Logo na entrada da varanda, ele pôs uma sinuca e convidava os amigos pra jogar, apostado, é claro, sempre, uma caixa de cerveja. Como todos sabiam que ele ganhava sempre, os amigos já levavam, cada um, a sua cota pro Zeca beber, era o costume. Com o dinheiro da sorte Zeca também comprou um fusquinha azul metálico 73 – o carro estava inteiro, conservadíssimo. Até o banco era de couro, uma raridade. Tirou um dia pro Pedrinho e o levou ao parque que tanto queria. Naquele dia o Zeca não bebeu. A família radiava de tanta felicidade. As coisas estavam em ordem.

Zeca tinha conseguido montar um negócio: comprar uma pequena confecção e como a sogra era costureira, colocou-a pra tocar o negócio. Ela nunca mais falou mal de Zeca.

Como não se conhece as tramas do destino, parece que a vida é assim mesmo, nunca a felicidade é completa.

As coisas iam bem até que na rua onde moravam apareceram os novos inquilinos da casa do seu Aristides, que há meses não conseguia alugar a casa. Era um casal de catarinenses, descendentes de alemães com italianos, que vinham tentar a vida no Rio de Janeiro. Depois se soube que eles eram fugitivos da justiça, na realidade só ele. O loirão, Luis Hansvögen, havia matado um vizinho que tomara gosto com sua esposa. Ela, Virgínia Hansvögen, um belo exemplar da raça, pele alvíssima, pernas torneadas, rosto vermelho de maçã e olhos azuis que nem o mar, cuja cor se compara ao que se via lá do alto da Rocinha, do encontro do mar com o céu. Era linda a alemoa. O Luís, embora sofrido pela lida com a agricultura e exposição ao sol forte da zona rural de Rio do Sul, também era um belo rapagão branco. Na verdade, esse casal desentoava nas cores predominantemente negras da comunidade. E todos os olhavam, com certa desconfiança. Pensavam até que fossem de alguma ONG para serviços humanitários. Eram chamados de gringos da casa do seu Aristides.

Não tardou pra que Zeca buscasse aproximação com aquele casal. Encontrando-se com Luís na padaria, chamou-o para que fosse à sua casa jogar uma partida de sinuca. Luís, embora de tradição européia, um tanto quanto fechada, não hesitou em aceitar o convite, pois para ele, em vez de continuar com aqueles olhares desconfiados, melhor seria fizesse logo amizade naquela comunidade. Ademais, não era demais fazer isso, vez que podia alguém desconfiar daquele estranho casal, calados e trancafiados em casa, a comentar ou talvez até atrair os olhares da polícia. Desta feita, melhor, portanto, seria aproximarem-se das pessoas e tentar passar despercebido. Afinal, o que perderia aquele casal, um tanto quanto diferente, na intenção de se esconderem na Rocinha, em misturar-se e tentar tornar-se “igual” de alguma forma. Concluíram, assim, que deveriam relacionar-se de forma amigável com as pessoas, e decidiram começar com Zeca e Amélia.

Aceitando o convite, Luís comunicou a Virgínia que deveriam ir à noite à casa do Zeca e Amélia, os primeiros vizinhos a se apresentarem hospitaleiramente aos recém-chegados. Virgínia, bonita, mas sisuda, não gostou da idéia, pois de certo trazia consigo certo preconceito contra os negros. Não obstante, houve de contentar-se, pois diferentemente, a situação poderia se complicar pro lado deles.

Por volta das oito horas da noite, ao chegarem à casa dos vizinhos, Luis e Virgínia ficaram no terraço, onde estavam alguns dos parceiros de sinuca e copo do Zeca, que, à socapa, balbuciavam sobre a aparência do casal de branquelos. Amélia que lavava as louças na cozinha num grito pediu que Zeca os recebesse. Pedrinho brincava na sala onde assistia o pica-pau.

Quando Zeca chega ao terraço para recebê-los, desbancou um sorriso branco, cujos dentes cintilavam pela alegria de trazer aquele casal ao convívio da comunidade. Zeca estava sem camisa, chinelo nos pés e bermudão. Com uma simpatia carioca, já os recebeu com um copo americano de cerveja pra cada um. Luís e Virgínia, cuja descendência não negava, também gostavam visceralmente de cerveja, pois Rio do Sul é cidade vizinha da famosa Blumenau, onde se realiza anualmente a Octoberfest, festa anual da cerveja. Luís, pegando o copo e acenando um movimento de levá-lo à boca, foi interrompido por Zeca que bradou:

- Vamos todos fazer um brinde aos novos vizinhos! Sejam bem vindos à nossa comunidade. Tenho certeza de que serão felizes como nunca em suas vidas.

Zeca estava certo, pois nem imaginava o que iria acontecer a partir daquele dia.

Nesse encontro, uma química rolou diferente no corpo daqueles dois casais. Luís, quando viu Amélia pela primeira vez, sentiu uma contração tão grande no peito, cujo olhar da emoção em cima daquele corpo negro escultural não pode controlar, mas tergiversou tossindo uma tosse seca, alegando não estar acostumado com aquela cerveja. Por outro lado, Amélia, que nunca tinha visto olhos claros tão bonitos quanto os de Luís, encantou-se com o jeito dele. E olharam-se, olharam-se, sempre disfarçadamente, com sorridos escamoteados. Ao jogar sinuca com Zeca, Luís não conseguia bater o taco na bola sem antes dar uma olhadinha, com muito cuidado, pras pernas torneadas e a bunda avantajada da mulata. Só ela percebia aquele quase assédio.

A loiraça alemoa, por sua vez, resistiu ao preconceito e também se deixou levar pelos encantos do Zeca Negão, que embora percebesse as investidas de Virgínia, não podia acreditar no que estava acontecendo. Aquela loira desbancava o negão e fez-lhe trêmulo pelos seus lindos olhos azuis. Como bom carioca, Zeca não deixava de prestar-lhe os devidos gracejos, seja no oferecimento de cerveja, aceitas, por vezes, seja convidando-a para jogar uma partida de sinuca, ao que ela sempre, com ar dulcíssimo, recusava.

Amélia, que dividia seu tempo nos afazeres de anfitriã cortês, no preparo dos tira-gostos e organização do espaço, recebia-os com educação e fino trato, sem descuidar-se, no entanto, de bandear os ares de suas curvas para a aprimorada atenção de Luís.

E a noite terminava daquela sexta-feira. Já eram quase três horas da manhã, onde os quatro, depois de expulsar os outros bebuns, amigos de Zeca, ficaram sós. Melhor dizendo, sozinhos não ficaram, pois que lhes fizeram companhia as suas fantasias que, embora se entregassem em pequenos gestos, estavam aprisionadas em suas mentes encantadas e desejosas de novas emoções.

E elas vieram.

Naquela noite, parecem que todos os diabinhos se libertaram das garras do inferno e escolheram aqueles quatro para deliciarem o feitiço do palco empíreo do deus Baco, que resolvera enamorar-se com Afrodite. Nessa festança, não faltaram como convidados ilustres outros deuses olímpicos: O deus Eolo cuidou que os ventos, em brisas, fossem favoráveis àquela madrugada quente, a acariciar as peles negras e brancas, cujos corpos já estavam embebidos pelos vinhos oferecidos pelo dono da festa, Baco. Afrodite cuidara que os olhares entre eles fossem envenenados a esquecer-se de qualquer compromisso e preconceito. Netuno cuidava que a baía de Copacabana, que podia ser vista do terraço da casa, permanecesse linda, serena e convidativa a refletir o luar em suas águas, para convidá-los ao clima romântico que se estabelecera. Naquele meio de madrugada, depois de tantas partidas de sinucas e latinhas vazias de cerveja, como que aproveitando o cenário preparado pelos outros deuses, eis que surge implacável, como sempre, o deus Cupido e suas flechas inexoravelmente certeiras.

Naquela madrugada dos deuses, os pobres humanos casais não lembraram um tiquinho sequer dos problemas e dificuldades porque vinham passando há tempos. Já não era importante o desemprego sofrido por Zeca e Amélia e a humilhação neles despejada há tanto tempo. Para Luís e Virgínia, não importava o desespero e desconforto por que passaram nos últimos tempos, obrigando-os a desterro de seu torrão e vida. O dinheirinho ganhado por Zeca no jogo-do-bicho, que lhe dera alguma dignidade, por certo, também fora aquela sorte preparada pelos deuses, pois só assim conseguiriam sair da casa do seu Aristides, possibilitando que ela fosse alugada por Luís e Virgínia. A sogra de Zeca conseguiu sair de casa do genro e virar gerente da confecção, livrando-os da presença constante, intrometida e inoportuna. A nova casa, comprada por Zeca, com varanda e quarto individual do Pedrinho, ensejou melhor conforto ao cenário criado pelos deuses para aquela festa. O fusquinha, no final, direi pra que serviu.

O desfecho dessa história, não menos pelo quadro de aparente e possível suruba, mas muito pela insinuação que as entrelinhas impõem, não foi, por conseguinte, tanto simplesmente uma noitada de troca de casais. Foi mais que isso, pois os deuses foram generosos com eles, dando-lhes muito mais.

Zeca, livrando-se das cobranças de Amélia, do filho, da mãe e da sogra, decidiu efetivar o seu intento de mudar de vida, como no início ele se propusera. Ficou para sempre com a alemoa Virgínia, pois entendeu que ela era sua alma gêmea. Seguiu com ela pra Rio do Sul. Casou-se um tempo depois em cerimônia católica e tudo – exigência da família dela. Tornou-se, pouco tempo depois, um próspero proprietário de uma cervejaria alemã, vindo a fazer parte, como presidente, da comissão organizadora da tradicional festa da cerveja, na famosa e bela Blumenau, cidade vizinha a não menos bela Rio do Sul. Eles viveram felizes para sempre.

Amélia, que era mulher de verdade, levando Pedrinho consigo, ficou com o apaixonado Luís Hansvögen, que venderam a casa na Rocinha e fugiram no fusquinha, no fim de semana seguinte, para Jijoca de Jericoacoara, no interior do Ceará. Lá eles fixaram moradia, ela mostrando-se esculturalmente nas praias da região, ele escondendo-se da polícia, pelo que fizera em Santa Catarina. Venderam o fusquinha 73 e compraram um jipão Toyota, fazendo frete aos turistas pelas dunas até Jericoacoara, em cuja praia eles abriram a famosa “Pizzaria da Mulata Hansvögen”. Viveram, também, felizes para sempre, cujas posturas, embora aparentemente dúbias, guardaram eterna fidelidade um ao outro, apesar dos constantes assédios dos gaviões, com olhares esguios, em cima da vultosa Amélia. Mas desta vez, Luís estava mais prudente e não queria espantar a freguesia. Preferia, à noite, deliciar-se de um prazer sem igual, naquela exuberante natureza, na companhia e carícias de sua formosa Amélia.

NO PÉ DE OITI

Era um pé de oiti
Saudades ainda
Lembrança vaga
Mas que tão linda
Da tua beleza
Minha princesa
Ainda menina
Me namorava

Naquela praça
Da Santa Casa
De Misericórdia
Naquela escola
Ginásio era
Clóvis Salgado
Eu namorado
E tu tão bela

Passou o tempo
E nós também
Tudo mudou
Mas só ficou
Meu nome e o teu
Naquela praça
Mostrando a graça
No pé de oiti

NA MINHA RUA

Na minha rua
Se vendia manuê
E cambo de peixe
Que passavam
Pescadores
Amadores

Na minha rua
Que não tinha calçamento
Era cuscuz de arroz
Que se vendia
E no brinca
Brincadeira de finca

Na minha rua
Não tinha esgoto
Nem bueiro
Só tinha areia
Areia fina
Rua que ensina

Na minha rua
Dos meus dez anos
Jogava bola
Nem dava bola
Se tinha escola
Ou não

Na minha rua
Moleque esperto
Brincava à toa
Olhava a boa
Linda lagoa
Da quarenta

Na minha rua
A gente brincava
Passava o tempo
Nem se lembrava
Quanta pobreza
Estava em volta

Na minha rua
Que o tempo fez
Não voltar mais
Não troco a rua
Daqueles tempos
Pelas de hoje